Marina Cabral: “Tenho uma bagagem cheia de conhecimentos que serão muito úteis a Angola”
Marina Cabral vive em Londres desde 2013, onde abraçou o desafio de estudar Psicologia, com foco no autismo, e trabalha hoje num dos maiores centros de saúde mental, especializado naquela condição – Heathlands Day Centre. Mas já conhecia bem o país do actual Rei Carlos III, onde estudou jornalismo e onde vivera já entre 2002 e 2009.
É natural de Benguela, onde nasceu há 43 anos. Jornalista, psicóloga, especialista em autismo e escritora, iniciou a carreira jornalística na TPA, com apenas oito anos, no programa infantil Comboio de Amizade. Tem três obras publicadas, incluindo uma na mesma editora que publicou o livro de discursos de Barak Obama, e gostaria, um dia, de voltar a Angola, para transmitir conhecimento sobre o autismo, num país onde esta condição é ainda muito mal-entendida.
O que a levou a estudar Psicologia? E a escolha pelo autismo, surgiu em que contexto?
Na verdade, a escolha do autismo veio primeiro. Já há algum tempo que investigava o comportamento humanos e havia descoberto que algumas pessoas apresentavam características e uma forma de ver a vida diferentes. Fui pesquisando, investigando na medida do possível naquela época. Por incrível que pareça – ou talvez tenha sido o destino que assim o quis -, quando regressei a Londres fiquei a morar num sítio a cinco minutos de um Centro que prestava apoio a pessoas autistas. Um dia fui lá como visitante, e saí com uma proposta de trabalho para começar no dia seguinte. Fiquei radiante, e hoje sei que, profissionalmente, foi o melhor que me podia ter acontecido. Com o passar do tempo, percebi que ingressar em Psicologia iria complementar o meu trabalho: desenvolver capacidades para melhor entender a mente humana é importante quando lidamos com as diferentes formas de autismo. Na verdade, tornar me psicóloga foi um complemento à minha função de especialista em autismo.
Teve dificuldade em inserir-se no mercado de trabalho no Reino Unido?
Inicialmente pensei que teria, regressei sem muita esperança de trabalhar na minha área até então, que era o jornalismo, mas voltei com determinação. Como já tinha família cá, vim com suporte, mas, ainda assim, readaptar-me foi um pouco complicado. A cultura e o clima são totalmente diferentes do nosso país, mas correu tudo bem e, profissionalmente, sinto que faço o que gosto e fui destinada a fazer.
Quais as vantagens de se viver no Reino Unido?
Este país trouxe-me muitas vantagens: foi aqui que consegui formar-me e continuo a ter acesso a mais oportunidades de evoluir academicamente. Mais da metade da minha vida foi passada aqui, por isso, tenho um carinho muito grande e gratidão por este país. Foi aqui que conquistei a minha independência financeira. Os meus filhos nasceram cá, e isso faz com que tenhamos uma conexão para toda a vida com este país onde, pela sua diversidade cultural, aprendemos sobre o mundo de uma forma mais ampla. Mas aqui há muitas distracções e, se a pessoa não tiver objectivos definidos, pode facilmente ficar estagnada na falsa ilusão de que, pelo facto de viver em Inglaterra, já vive bem. O mercado de trabalho é extremamente competitivo, feito de escolhas. Ou se arranja um trabalho onde se pode ficar 20 anos, ou, se se quiser evoluir, ir à procura de mais, tens de se estudar, aprender todos os dias.
Jamais saberemos tudo, e o mundo está em constante mudança: é preciso adaptar-nos às muitas mudanças que vão acontecendo.
É autora de três livros, tendo o terceiro e último – The Greatness of Being Different – sido publicado pela mesma editora do livro de Barack Obama, Speeches. O que representa isso para si?
O livro representa a concretização de algo sonhado, projectado, trabalhado e executado com muito esforço. Escrevi o livro durante a pandemia, tinha acabado de dar à luz a minha filha, tinha perdido um irmão há bem pouco tempo e estava a fazer provas. Acredito que o misto de emoções que senti foi o catalisador para completar a obra: quando estou feliz, escrevo; quando estou triste, escrevo. Este último livro exigiu de mim muita perseverança.
E o tema da editora?
Quando disse a algumas pessoas que iria enviar o manuscrito para a Europe Books, algumas sorriram levemente, de forma irónica, pois é uma editora que tem um processo de selecção muito rígido. Ainda bem que ninguém conseguiu persuadir-me a desistir.
Como foi o processo?
Três semanas depois de enviar o manuscrito, recebi a resposta de que gostaram, e já com uma proposta para publicação do livro. Como tinha referido, este livro, para mim, significa uma grande realização, um exemplo de que devemos sempre acreditar nas nossas capacidades. Às vezes as pessoas projectam os seus medos, frustrações, incapacidades no outro.
Como psicóloga, sei a frequência com que isso acontece e aprendi a bloquear. Determino as minhas capacidades e, ainda que algo pareça grandioso demais, mais vale tentar e falhar, do que viver amargurado por nunca ter tentado.
Fale-nos um pouco dos seus livros…
O primeiro – Educados Somos Mais Felizes e Bem-sucedidos – tem 23 histórias. Em todas introduzi valores morais, são histórias que relatam princípios de educação que jamais deixarão de estar na ‘moda’, ou, pelo menos, não deviam. É um livro super-recomendável para crianças e para adultos também, porque estes são os responsáveis pela educação das crianças. É, assim, um livro para todos!
E o segundo?
The Superpower of Caring for Others conta a história de uma jovem com superpoderes, que ela usa para ajudar as pessoas mundo fora. Ela ouve pensamentos, voa, entre outros poderes, mora numa ilha encantada e tem como mentores quatro sobas. Neste livro, inseri bastantes aspectos da cultura angolana. É escrito em inglês, e nele falo sobre a importância dos sobas na nossa cultura. Esta heroína nasceu em Angola: há muita ficção misturada com realidade.
Por fim, o mais recente…
The Greatness of Being Different conta a história de um rapaz autista que foi internado numa clínica, porque os pais não sabiam lidar com a sua condição. Nathan, o personagem, conta como foi passar grande parte da sua vida internado, como conseguiu aprender a aceitar e a viver com a sua condição. O livro passa muitos ensinamentos em relação ao autismo, sendo tudo contado de forma divertida e muito emocionante – contém drama, acção, crime, sexo, etc. Estes dois últimos livros estão escritos em inglês e à venda por toda a Europa, EUA, Arábia Saudita, Dubai, e todos estão disponíveis em diversas plataformas online.
Integrou, em tempos, um grupo que fez uma pesquisa sobre uma vacina para diminuir a ansiedade em autistas. Como foi essa experiência?
Durante um ano, tive que monitorizar de perto os comportamentos de um dado número de pacientes de um centro para autistas. Eram pacientes com um nível elevadíssimo de ansiedade, e a ideia era a equipa, incluindo cientistas e médicos, poder trabalhar nessa vacina, que teria que ser aprovada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A vacina foi feita, descobrimos que ajudava a combater a ansiedade, mas tinha outros efeitos negativos, por isso, não recebeu o ‘selo’ de aprovação. A equipa continua a trabalhar no seu aperfeiçoamento.
Como se faz o acompanhamento psicológico de pessoas autistas?
Tudo depende do nível de autismo de cada paciente. Com autistas severos, a maior preocupação é ensiná-los a serem o mais independentes possível, pois podem apresentar dificuldades em fazer até as mais pequenas tarefas. Há também autistas totalmente independentes, mas enfrentam muitos problemas de auto-aceitação. Podem ter comportamentos peculiares, sofrer de baixa auto-estima, dificuldade em controlar emoções, etc..
Como se faz essa análise?
Primeiro, é necessário fazer uma avaliação, conversar, observar bastante o paciente. Mediante o diagnóstico, traça-se um plano que o ajude no seu dia-a-dia. Os cuidadores também devem receber apoio, pois a ‘carga’ da responsabilidade recai sobre os seus ombros. Numa casa pode morar apenas um portador de autismo, mas o impacto é geral, e os que lidam com ele também precisam de ser acompanhados.
Qual é a realidade do autismo em Angola?
Estive recentemente no país, numa formação sobre autismo, e verifiquei que há um número crescente de portadores desta condição em Angola. Acredito que existe necessidade de fazer se uma investigação das causas. Também notei que existe uma necessidade gritante de serem feitas campanhas de consciencialização sobre este tema. Muitas pessoas vivem na ignorância e associam o autismo a misticismos. As escolas precisam de pessoas formadas, preparadas para lidar com o autismo.
De que maneira pode ajudar o país a melhorar neste aspecto?
Passando os meus conhecimentos. Pretendo dar mais formações. Estive em Angola duas semanas, e o que fui lá fazer foi uma ‘gota’ no oceano, é preciso formar pessoas, ajudar a erradicar o preconceito, ensinar as pessoas a identificarem e lidarem com portadores de autismo – que são extremamente sensíveis.
Este é o meu sonho, que estou a planear, idealizar e à espera das oportunidades certas para executar. Tenho uma bagagem cheia de conhecimentos que serão muito úteis a Angola, a toda a África.
Tem sido distinguida com prémios de literatura e participado em exposições/feiras onde, muitas vezes, é a única angolana…
Sinto que estou a abrir portas, para que as pessoas acreditem que também conseguem. Já estive nas feiras mais conceituadas a nível mundial, como de Londres ou Milão, e fui convidada para participar noutras, mas, infelizmente, não tenho disponibilidade para ir a todas. O meu livro The Greatness of Being Different foi enviado para cadeias televisivas estatais e independentes a nível mundial, e está nas mãos de realizadores – quem sabe a história de Nathan ‘vira’ filme ou serie. Sinto um enorme orgulho na minha trajectória, que não tem sido fácil.
Gostaria que o nosso país apoiasse mais a cultura, que olhasse mais para os angolanos na diáspora: apesar de não estarmos em Angola, levamos, com orgulho, a nossa bandeira por onde passamos.
Como fica a paixão pelo jornalismo?
Continua dentro de mim, jamais vai morrer – aliás, acredito que a minha veia jornalística ajuda bastante no meu actual trabalho, pois o jornalista comunica, tenta perceber o que se passa para poder passar a informação da melhor forma, e eu faco isso como psicóloga, com os meus pacientes autistas. Faco muitos vídeos com conteúdo sobre psicologia, autismo, e quem quiser saber mais pode seguir-me nas minhas paginas nas redes sociais [@imcabral.oficial]
Pensa regressar a Angola?
Angola nunca será descartada da minha lista de prioridades, é o meu país.
Gostaria de desenvolver um projeto amplo de formações, consciencialização sobre autismo, um projecto que abrangesse se todas as províncias, porque Angola não e só Luanda.
As formações que dou na Europa são de teor um pouco mais avançado: falo para pessoas que já passaram do nível básico em relação a conhecimentos sobre esta condição. Em Angola, tenho consciência de que o trabalho, na sua grande maioria, é de raiz. Por outro lado, conheço a realidade de Angola. Nem todos os profissionais da área estão culturalmente preparados para lidar com o autismo, e isso é algo que deve ser levado em consideração.
Que mensagem gostaria de deixar aos angolanos na diáspora?
Cada um de nós teve os seus motivos para emigrar – e cada um sabe das dificuldades que enfrentou no processo de adaptação. Nós somos guerreiros. Espero que, de cabeça erguida, cada um possa correr atrás dos seus objetivos, sempre com fé de que dias melhores virão; que dentro das suas funções profissionais, cada um faça o seu melhor… mas não se esqueça de cuidar da saúde mental. Estar longe dos familiares, conviver com uma cultura diferente, muitas vezes actuar numa área profissional que não é a nossa, pode levar-nos a tristeza, depressão, sentimento de inutilidade, mas lembrem-se: todos somos importantes e temos valor. Não fiquem estagnados e jamais permitam que digam que não têm valor. Dentro das suas possibilidades, corra atrás dos seus sonhos. E se sentir que precisa de apoio, procure ajuda profissional.